RELATO DE CASO: MIOSITE CAUSADA POR VÍRUS DA DENGUE
Case report: Miosite caused by dengue virus causes
Relato de caso: Miositis causada por virus del dengue
RESUMO
A infecção pelo vírus da dengue, endêmico em áreas tropicais, causa uma doença febril de amplo espectro clínico. A mialgia é uma queixa importante e de grande prevalência. Em algumas ocasiões, ela pode ser localizada, principalmente em membros inferiores, e interferir com a movimentação e se acompanhar de achados laboratoriais compatíveis com miosite.
OBJETIVO: Descrever os achados clínicos e laboratoriais de miosite relacionada ao vírus da dengue em paciente pediátrico.
MÉTODO: Revisão de prontuário.
RELATO DE CASO: Menor, 6 anos de idade, foi examinado no 4º dia de febre elevada, cefaleia, mialgia e dor localizada em ambas as panturrilhas. Exames laboratoriais demonstraram leucopenia, elevação de transaminase e da creatinofosfoquinase. IgM para a dengue foi positiva.
CONCLUSÃO: Em áreas endêmicas, a dengue deve ser considerada no diagnóstico diferencial da miosite aguda benigna da infância.
Palavras-chave: dengue, miopatias distais, miosite, vírus da dengue.
ABSTRACT
Infection with the dengue virus, endemic in tropical areas, causes a febrile disease of broad clinical spectrum. Myalgia is an important and highly prevalent complaint. On some occasions it may be located mainly in the lower limbs, and interfere with the movement and is accompanied by laboratory findings consistent with myositis.
OBJECTIVE: To describe the clinical and laboratory findings of myositis related to the dengue virus in pediatric patients.
METHOD: Retrospective analysis.
CASE REPORT: Less than six years of age was examined on the 4th day of high fever, headache, myalgia, and localized pain in both calves. Laboratory tests showed leukopenia, elevated transaminase and creatine. IgM was positive for dengue.
CONCLUSION: In endemic areas, dengue should be considered in the differential diagnosis of benign acute childhood myositis.
Keywords: dengue, dengue virus, distal myopathies, myositis.
RESUMEN
La infección por el virus del dengue, endémico en áreas tropicales, causa una enfermedad febril de amplio espectro clínico. La mialgia es una queja importante y de gran prevalencia. En algunas ocasiones ella puede ser localizada, principalmente en miembros inferiores, e interferir con el movimiento y acompañarse de hallazgos de laboratorio compatibles con miositis.
OBJETIVO: Describir los hallazgos clínicos y de laboratorio de miositis relacionada al virus del dengue en paciente pediátrico.
MÉTODO: Revisión de prontuario.
RELATO DE CASO: Menor de seis años de edad fue examinado en el 4º día de fiebre elevada, cefalea, mialgia y dolor localizado en ambas las pantorrillas. Exámenes de laboratorio demostraron leucopenia, elevación de transaminasa y de la creatinfosfoquinasa. IgM para el dengue fue positiva.
CONCLUSIÓN: En áreas endémicas, el dengue debe considerarse en el diagnóstico diferencial de la miositis aguda benigna de la infancia.
Palabras-clave: dengue, miopatías distales, miositis, virus del dengue.
Nos últimos anos, tem sido relatado um aumento nos quadros de miosite aguda benigna, devido ao vírus da dengue, na população pediátrica. Descrita pela primeira vez por Lundberg, caracteriza-se pela dor de início súbito na panturrilha e dificuldade para deambular, frequentemente após pródromos de infecção viral de vias aéreas superiores, porém, a miosite pelo vírus da dengue tem se tornado cada dia mais comum na população pediátrica, principalmente em áreas endêmicas.
No presente relato de caso, apresentamos um quadro de miosite viral em pré-escolar. Considerando o contexto epidemiológico e a presença de manifestações sugestivas, buscamos confirmar a etiologia pelo vírus da dengue.
RELATO DE CASO
O.S.C.N., sexo masculino, cor branca, 6 anos de idade, procurou o pronto atendimento de pediatria do Hospital Regional de Mato Grosso do Sul, com queixa de febre elevada (atingindo até 39,5ºC), cefaleia, artralgias e queda do estado geral nos últimos 4 dias. Associado ao quadro, na manhã do dia do atendimento, o paciente apresentou ao despertar dor forte em ambas as panturrilhas, com dificuldade para se manter de pé e alteração da marcha. Estava fazendo uso de analgésico.
Peso: 23 Kg. Em regular estado geral, consciente, orientado, febril (38,9 ºC), hidratado, corado. Otoscopia e oroscopia sem alterações. Ausculta cardiopulmonar normal. Abdome plano, flácido, indolor, sem visceromegalias. Eliminações fisiológicas normais. Presença de dor à palpação e compressão de ambas as panturrilhas, ausência de aumento de volume ou presença de sinais flogísticos. Demais grupos musculares não afetados. Sem limitação da mobilidade das articulações dos joelhos e tornozelos. Força muscular e reflexos patelares e aquileus normais. Presença de claudicação.
Exames laboratoriais realizados no dia da internação demonstraram: hemoglobina (Hb): 12,1g/dL; hematócrito (Ht): 33,7%; leucócitos totais: 4340 com 2% de eosinófilos, 1% de bastões, 46% de segmentados, 45% de linfócitos, 6% de monócitos e plaquetas: 188.000; velocidade de hemossedimentação (VHS):12 mm; transaminase oxaloacética (TGO): 96 U/L (normal até 59 U/L); transaminase pirúvica (TGP): 378 U/L (normal até 72 U/L); creatinofosfoquinase (CPK) = 7124 U/L (normal até 170 U/L), CKMB – 224; ASLO < 200.
Devido ao quadro doloroso, o paciente foi internado, realizada hidratação venosa, analgesia e repouso. Com 24 horas de internação, foram repetidos os exames, hemograma mantendo os mesmos padrões iniciais, CPK – 15.335, CKMB – 156; TGO -539 U/L (normal até 59 U/L), TGP – 223 (normal até 72U/L); ureia: 3,5; creatinina: 0,5. Intensificado hidratação a fim de evitar lesão renal por rabdomiólise.
No 5º dia da doença, paciente apresentava-se afebril e sem dores em panturrilhas. Os novos exames mostraram: Hb: 11,6g/dL; Ht: 33,3%; Leucócitos totais: 4450, 2% de eosinófilos, 0% de bastões, 33% de segmentados, 54% de linfócitos, 9% de monócitos, plaquetas = 155.000; TGO: 348 U/L e TGP: 193 U/L; CPK: 1380 U/L; CKMB- 6,8, função renal normal. Paciente recebe alta e foi orientado a retornar em 48 h para reavaliação e realização para sorologia para dengue. No retorno, o paciente persistia afebril, porém, com discreta dor em panturrilhas. Solicitada sorologia para dengue, mantido analgesia e hidratação oral.
No 10º dia da doença, paciente foi novamente reavaliado, estando assintomático. Anticorpos anti dengue (IgM), Método Captura ELISA: reagente.
DISCUSSÃO
A miosite aguda benigna da infância é caracterizada por intensa mialgia, comprometendo bilateralmente as panturrilhas e, às vezes, as coxas. Em diversas séries de literatura, observou-se que a vasta maioria das crianças apresentava títulos muito elevados das enzimas musculares, em particular da creatinofosfoquinase (CPK), tal qual nas miopatias hereditárias e miopatias inflamatórias. A miosite pode ser causada por infecções bacterianas, fúngicas e parasitárias, sobretudo em hospedeiro imunocomprometido. A etiologia bacteriana, por agentes piogênicos, pode ter uma evolução aguda e com risco de vida, mas tem acometimento localizado em determinados grupos musculares. Outras doenças infecciosas podem associar-se com mialgias, com ou sem miosite incluindo, além da Influenza, a dengue, ricketsioses, endocardite infecciosa, toxoplasmose, doença de Lyme e a infecção pelo vírus HIV. Nestas, embora a sintomatologia musculoesquelética possa ser autolimitada, os sinais da doença de base certamente trariam os indícios para o diagnóstico1,2.
A maioria das crianças com miosite aguda, devido a um quadro viral, é vista nos setores de emergência, pois os sintomas são alarmantes para os pais, havendo tendência de consultas múltiplas em diversas especialidades e investigações dispendiosas. As principais condições clínicas para diagnóstico diferencial no setor de emergência são a rabdomiólise, a síndrome de Guillain-Barré, a distrofia muscular hereditária e a dermatomiosite juvenil. Os seus mecanismos etiopatogênicos não são precisamente conhecidos. As hipóteses vigentes são que ocorra dano muscular por processos mediados imunologicamente ou que partículas virais possam invadir os tecidos musculares e causar danos. Há evidências de partículas virais isoladas em biópsias de músculos da panturrilha, com alterações degenerativas não específicas e mionecrose. Entre as complicações possíveis, a rabdomiólise, embora rara, pode resultar em dano renal secundário à mioglobinemia e mioglobinúria, sendo estas mais frequentemente descritas nas meninas afetadas1-4.
É importante diferenciar a “miosite aguda viral” de outras doenças mais graves. Para isso, primeiramente, a anamnese deve ser consistente, pois há pródromos virais seguidos por início agudo de dor muscular em membros inferiores, com resolução espontânea entre 48 e 72 horas. Os exames musculoesquelético e neurológico detalhados devem excluir os sinais indicativos de doenças mais graves, como a alteração dos reflexos profundos. O exame laboratorial mais consistente é a elevação da CPK, mas é importante afastar a rabdomiólise por meio do exame de urina para identificar mioglobinúria. É prudente indicar hemograma completo e bioquímicos básicos, assim como uma amostra para a virologia. Exames de imagem mais complexos, como o ultrassom e a ressonância magnética, poderiam contribuir com a elucidação diagnóstica, mas a sua relação custo-benefício também é questionável3,4.
A criança com quadro de miosite pode mostrar uma marcha bizarra, claudicação e até impossibilidade de deambular. Ela surge quando os sintomas virais estão desaparecendo. O prognóstico é favorável, com recuperação total após um período de 1 a 5 dias ou até 4 semanas. Os exames complementares revelam hemograma normal ou leucopenia, hemoglobinúria, aumento da CPK (em dois terços dos casos) e alterações eletromiográficas. As duas explicações propostas para tal acometimento são a invasão direta por partículas virais ou o dano muscular por mediação imunológica desencadeada pelo vírus.
O nosso paciente era do sexo masculino e tinha 6 anos de idade. A ocorrência da doença tem sido relatada principalmente neste sexo, o que, aliado à recorrência dos episódios e ao acometimento de irmãos, tem suscitado a hipótese de um defeito metabólico muscular provocado por um agressor viral em indivíduos geneticamente suscetíveis. As crianças são mais afetadas, talvez pela imaturidade muscular.
O paciente apresentou quadro de mialgia localizada em ambas as panturrilhas, sem aumento de volume ou sinais flogísticos, no quarto dia de uma doença caracterizada por febre elevada e cefaleia. Também evidenciou dificuldade para caminhar. Esta alteração muitas vezes pode levantar a suspeita de síndrome de Guillain-Barré, mas que é prontamente descartada pela preservação de força muscular e dos reflexos profundos.
Nosso paciente apresentou, além do hemograma com leucopenia e queda de plaquetas sugerindo a etiologia viral, aumento da TGO, TGP, CKMB e CPK, esta em níveis altíssimos, demonstrando, assim, acometimento e hepático e muscular. Como vivemos no Estado do Mato Grosso do Sul, um dos locais com maior índice de casos de dengue, este diagnóstico foi suspeitado diante do quadro clínico de febre elevada há cinco dias, cefaleia, astenia e mialgia. O paciente foi classificado como apresentando um quadro de dengue clássica pela ausência de hemoconcentração, de queda importante no número de plaquetas (< 100.000) e de manifestações hemorrágicas. A abordagem terapêutica incluiu o uso da dipirona para controle da febre e a recomendação para oferta hídrica abundante, tendo mantido o paciente em internação hospitalar, devido às dores em membros inferiores. Houve regressão, diariamente, do quadro febril, porém, o paciente persistiu com quadro de mialgias e dificuldade a deambulação, com melhora progressiva durante a internação5-7.
O diagnóstico de dengue foi confirmado por sorologia na segunda semana da doença. Na literatura existem alguns relatos sobre miosite associada à dengue. Misra et al.3 acompanharam 7 casos de quadriplegia aguda devido à miosite pelo vírus da dengue e sugeriram que, em áreas endêmicas, a dengue deva ser considerada no diagnóstico diferencial da paralisia flácida aguda. Quarenta casos de miosite benigna aguda na infância foram estudados por Rajajee et al.5 na Índia, sendo que metade deles no contexto de infecção pelo vírus da dengue2.
CONCLUSÃO
No presente caso, o diagnóstico de dengue foi confirmado, o paciente tratado segundo os protocolos do Ministério da Saúde, e evoluiu bem, com remissão do quadro de dificuldade para deambulação. A miosite aguda deve ser investigada detalhadamente na faixa etária pediátrica, levando-se em conta os diversos diagnósticos diferenciais. A miosite aguda, devido a um quadro viral, apresenta um quadro clínico muito específico, com manifestações importantes de mialgias com comprometimento da deambulação. Sua investigação e suspeita como diagnóstico diferencial é muito importante, pois quando diagnosticada precocemente gera maior tranquilidade nos familiares da criança acometida. A miosite viral aguda, devido ao vírus da dengue, deve ser sempre lembrada pelo pediatra, principalmente em regiões endêmicas2.
3. Misra UK, Kalita J, Syam UK, Dhole TN. Neurological manifestations of dengue virus infection. J Neurol Sci. 2006;244(1-2):117-22. PMID: 16524594 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.jns.2006.01.011
4. Lundberg A. Myalgia cruris epidemica. Acta Paediatr. 1957;46(1):18-31. PMID:13410584 DOI: http://dx.doi.org/10.1111/j.1651-2227.1957.tb08627.x
5. Rajajee S, Ezhilarasi S, Rajarajan K. Benign acute childhood myositis. Indian J Pediatr. 2005;72(5):399-400. PMID: 15973022 DOI: http://dx.doi.org/10.1007/BF02731735
6. Puccioni-Sohler M, Rosadas C, Cabral-Castro MJ. Neurological complications in dengue infection: a review for clinical practice. Arq Neuropsiquiatr. 2013;71(9B):667-71. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0004-282X20130147
7. Finsterer J, Kongchan K. Severe, persisting, steroid-responsive Dengue myositis. J Clin Virol. 2006;35(4):426-8. PMID: 16414305 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.jcv.2005.11.010
Bacharel em medicina – médico residente em pediatria
Endereço para correspondência:
Emerson Wacholz Garcia
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